29.12.08

Viagem


É o vento que me leva.

O vento lusitano.

É este sopro humano

Universal

Que enfuna a inquietação de Portugal.

É esta fúria de loucura mansa

Que tudo alcança

Sem alcançar.

Que vai de céu em céu,

De mar em mar,

Até nunca chegar.

E esta tentação de me encontrar

Mais rico de amargura

Nas pausas da ventura

De me procurar...


Miguel Torga, in 'Diário XII'

25.12.08

Rosas em Janeiro........



A mulher de D. Dinis, a rainha Santa Isabel, tornou-se célebre pela sua imensa bondade. Ocupava o tempo a fazer bem a quantos a rodeavam, visitando e tratando doentes, distribuindo esmolas pelos pobres.
Ora, conta a lenda que o rei, já irritado por ela andar sempre misturada com mendigos, a proibiu de dar mais esmolas. Mas, certo dia, vendo-a sair furtivamente do palácio, foi atrás dela e perguntou o que levava escondido por baixo do manto.
Era pão.

Mas ela, aflita por ter desobedecido ao rei, exclamou:
- São rosas, Senhor!
- Rosas, em Janeiro?- duvidou ele.
De olhos baixos, a rainha Santa Isabel abriu o regaço - e o pão tinha-se transformado em rosas, tão lindas como jamais se viu.

14.12.08

O dia deu em chuvoso



O dia deu em chuvoso.

A manhã, contudo, esteve bastante azul.

O dia deu em chuvoso.

Desde manhã eu estava um pouco triste.


Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?

Não sei: já ao acordar estava triste.

O dia deu em chuvoso.


Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.

Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.

Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.

Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?

Dêem-me o céu azul e o sol visível.

Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.


Hoje quero só sossego.

Até amaria o lar, desde que o não tivesse.

Chego a ter sono de vontade de ter sossego.

Não exageremos!

Tenho efetivamente sono, sem explicação.

O dia deu em chuvoso.


Carinhos? Afetos? São memórias...

É preciso ser-se criança para os ter...

Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!

O dia deu em chuvoso.


Boca bonita da filha do caseiro,

Polpa de fruta de um coração por comer...

Quando foi isso? Não sei...

No azul da manhã...


O dia deu em chuvoso.


Álvaro de Campos, in "Poemas"

7.12.08

Lisboa





Saio porta fora

E vou por ai pelos caminhos,

A noite devora, cruzam-se homens sozinhos;

Noites serradas,.

Guerras triviais,

Portas fechadas, palavras infernais.





E ao ver-te Lisboa, Lisboa,

Perder, o Bairro da Madragoa




Ruas e Vielas,

Musgo nos telhados

Oheh, oh, oh

Velhos á janela,

Lembram tempos passados




Rádios acesos,

Um homem sem vez

Oheh oh, oh

Afoga as tristezas, num copo de três






E ao ver-te Lisboa, Lisboa

Perder o Bairro da Madragoa



Mulheres de rua,

Histórias de atrofiar

Noites de lua,

Segredos por desvendar,

Sentir-te no escuro,

Olhar-te nua e crua,

Rodeado de um muro de gente que não recua.



E ao ver-te Lisboa, Lisboa

Perder o Bairro da Madragoa



Polo Norte

5.12.08

Volta ao Mundo


Estar Só é Estar no Íntimo do Mundo


Por vezes cada objecto se ilumina

do que no passar é pausa íntima

entre sons minuciosos que inclinam

a atenção para uma cavidade mínima

E estar assim tão breve e tão profundo

como no silêncio de uma planta

é estar no fundo do tempo ou no seu ápice

ou na alvura de um sono que nos dá

a cintilante substância do sítio

O mundo inteiro assim cabe num limbo

e é como um eco límpido e uma folha de sombra

que no vagar ondeia entre minúsculas luzes

E é astro imediato de um lúcido sono

fluvial e um núbil eclipse

em que estar só é estar no íntimo do mundo


António Ramos Rosa, in "Poemas Inéditos"